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Hélio Oiticica

 

Hélio Oiticica foi um artista performático, pintor e escultor brasileiro. Sua obra caracteriza-se por um forte experimentalismo e pela inventividade na busca constante por fundir arte e vida. Seus experimentos, que pressupõem uma ativa participação do público, são, em grande parte, acompanhados de elaborações teóricas, com a presença de textos, comentários e poemas.

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Em 2006 a galeria realizou uma exposição individual de Hélio Oiticica, exibindo dez "Parangolés Capa" criados em 1979 para o Festival de Recife. Mais do que simplesmente apresentá-los como objetos estáticos, a mostra, com montagem da cenógrafa Daniela Thomas, permitiu vê-los também em uso: um vídeo feito no Minhocão esvaziado colocou passistas da Vai-Vai para dançarem com as capas no corpo.

 

Paralelamente à exposição, a galeria promoveu o lançamento de um catálogo concebido por Carlito Carvalhosa, fotografado por Gui Paganini e com texto inédito do crítico britânico Guy Brett: "Buscando inspiração tanto no aristocrático quanto no popular, as "Capas do Parangolé" são, ao mesmo tempo, mantos e farrapos", escreveu.

Leia os textos escritos por Paulo Bruscky e Guy Brett.

Textos Helio

Hélio Oiticica e os Parangolés das capas no Recife

Paulo Bruscky

 

Em meados de julho de 1979, Hélio Oiticica veio ao Recife como meu convidado para participar do II Festival de Inverno da Universidade Católica de Pernambuco. Oiticica fez palestra ilustrada por slides sobre a sua obra e trajetória. Além disso, realizou uma performance com dez parangolés das capas no pátio da Universidade e no Pátio São Pedro, no centro da cidade. A seu lado pude testemunhar com que alegria ele viu o público vestindo/coreografando seus parangolés das capas, pela primeira vez no Brasil. Eventos como este aconteceram em Londres em 1969 e Pamplona em 1972.

 

Foram semanas inesquecíveis, durante as quais conversamos muito sobre arte, sua vida e sua obra. Certa vez, Jomard Muniz de Britto, AlmAndrade, Jota Medeiros, Oiticica e eu rompemos a manhã trocando idéias num bar no morro da Conceição. Hélio me disse que uma das inspirações para o projeto dos parangolés das capas se deu quando ele passava de ônibus pelo Jardim Botânico e viu um gari pegar um saco grande de lixo, fazer dois buracos para os braços, um para a cabeça, e vestí-lo em seguida para se proteger da chuva.

 

Sua carta de 12.07.1979, publicada neste catálogo, ilumina seu entendimento sobre os parangolés. Oiticica me pediu para anotar a relação das primeiras pessoas a usarem os parangolés, para catalogação em seu arquivo. Consegui, na época, uma passagem para ele ir do Recife a Manaus, onde visitou seu irmão César, voltando depois para o Rio de Janeiro.

Os dez parangolés confeccionados no Recife foram exibidos e vestidos em 1981, em Porto Alegre, no Espaço NO, por solicitação de Vera Chaves Barcellos. Em junho de 1986, como Coordenador da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, inaugurei o Auditório Multimeios Hélio Oiticica, na Galeria Metropolitana de Arte Aloísio Magalhães.A apresentação dos parangolés das capas de Hélio Oiticica no Recife é de extrema importância porque este foi um dos poucos trabalhos que ele realizou no Brasil após longa estada em Nova York e pouco antes de morrer no Rio de Janeiro, em março de 1980, oito meses depois do evento.

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Capas d'Agora (Capes 'o Now)

Guy Brett

Todo  texto a respeito de Hélio Oiticica necessariamente terá que tentar partir daqueles objetos que sobreviveram à sua morte; objetos que hoje são descritos, expostos, catalogados, comprados e vendidos como sua “obra”. Terá que partir, também, do ato vital para o qual ele os concebeu. Os objetos associados à noção de Parangolé de Oiticica assumiram a forma de estandartes, bandeiras, capas ou tendas. Ele sabia disto e via com bons olhos esta associação, ao mesmo tempo em que apontava para o fato de não ser esta associação o aspecto crucial da questão. Ele chamava seus Parangolés de “transobjetos” que, quando vestidos, se transformavam: “já não é o objeto no que possuia  de conhecido , mas uma relação que torna o que já era conhecido num novo conhecimento e o que resta a ser apreendido, um lado poder-se-ia dizer desconhecido,  que é o resto que permanece aberto à imaginação que sobre essa obra se recria “ 

 

E ele continua, em seu estilo caracteristicamente paradoxal: “o que surgirá no  contínuo contacto  espectador-obra estará portanto condicionado ao caráter da obra, em  si incondicionada. Há, portanto, uma relação condicionada-incondicionada na contínua apreensão da obra”. 

 

Essas declarações vêm dos primeiros escritos de Oiticica dedicados especificamente ao tema dos Parangolés. Mais tarde, quando ele já estava em Nova York, retornaria ao tema, nos textos mais compactos, sugestivos e com forte apelo gráfico que ele produziu nessa cidade. Isto foi uma maneira textual de tentar extrair o papel aberto, vivo e “incorporante” do objeto, para além da contradição e da antítese:

 

CAPAcondição (Extensão concreta do vestir-incorporar)

 

FEITO PRO VESTIR

 

(não mais como procura de não-condicionamentos

sensoriais erigindo experimentalidade nova)

 

CAPAS FEITAS NO CORPO eram/pertenciam como  estado

 extremo às primeiras premissas de experimentalidade

 do não-condicionado sensorial:

o corpo movimentando sobre si mesmo:

 construir-incorporar

casulo vazio extensão solta q se reincorpora a cada vestir

 

CAPAS d’agora:

 

vestimentas-concreções cujo vazio da

 ‘pequena totalidade’ é feito pro vestir

q é objeto sensorial mas não  se reduz a isso:

a contradição  entre não-condicionado/’naturalismo do fazer’

de antes não aparece;

unidades exploráveis sem previsão pensada

mais abertas sem preocupação com ‘significações

 corporais’, ‘não-condicionamentos sensoriais’, etc.” 

 

Aqui ele cita “capas-construídas-no-corpo”. Como sabemos pela carta de Oiticica para Paulo Bruscky, em 12 de julho de 1979, na qual ele aceitava um convite de Bruscky para encenar um evento de Parangolé em Recife, as estruturas construídas no corpo seriam improvisadas pelos próprios participantes a partir de pedaços de tecido em cores primárias, que eles prenderiam com alfinetes. Este seria o seu terceiro experimento com capas construídas-sobre-o-corpo. Os outros dois foram em Sussex, na Inglaterra, em 1969, e em Pamplona, na Espanha, em 1972 (veio daí a brincadeira que ele faz na carta, ao falar da adaptabilidade da sua idéia a ambientes totalmente diferentes!). Capas construídas-sobre-o-corpo, por isto, permaneceram uma constante ao longo dos anos, nos quais o caráter da capa do Parangolé mudou consideravelmente.

 

Talvez possamos agrupar estas mudanças em quatro episódios. Em primeiro lugar estão as capas de cores primárias, do começo dos anos 1960. Estas representam um extraordinário salto, a partir dos experimentos em pintura de Oiticica, em “manifestações da cor no ambiente espacial” - Relevo Espacial, Núcleo –, em direção a um novo espaço, centrado no corpo em movimento. Logo depois, viriam as capas político-sociais, ativistas e poéticas da metade dos anos 1960, com a introdução de palavras e de uma vasta gama de materiais, das quais a melhor síntese se encontra no título (e nas palavras pintadas) de uma das capas que Oiticica fez em parceria com Nildo da Mangueira: Capa 11, Incorporo a Revolta, 1967. Essa série vai desde o simples (como a Capa 8, Capa da Liberdade, 1966, feita com Rubens Gerchman, na qual alguns pedaços de tecido pendentes do ombro revelam e ocultam a palavra “liberdade” na exuberância impossível de ser reprimida da dança do participante); até o mais complexo (capas que homenageiam amigos e evocam estados de vida, mais individuais e mais elaboradas tanto no que diz respeito à sua estrutura física quanto no que se refere a seus significados metafóricos). A dialética do vestir/assistir no evento Parangolé também foi desenvolvida.

 

Depois vieram capas que surgiram nos anos de Oiticica em Nova York: peças mais rígidas, mais abstratas. Ao mesmo tempo em que refletem um ambiente urbano mais rude, estas criam um jogo entre corpo nu e a transparência, o encobrimento e o vazio (Capa 23, M’Way Ke, 1972, ou o embrulho do rosto de Waly Salomão pintado em escarlate no Parangolé de Cabeça, 1976.) Vazias, para serem animadas pela imaginação individual dos participantes, acompanham a teoria do Supra-sensorial de Oiticica, teoria esta que é uma tentativa de contrapor-se ao consumo de sua obra num nível meramente imagético, que ele viu  como uma característica da recepção de seu conjunto Tropicália, de 1967.  Finalmente, há a cobertura corporal feita no seu último ano de sua vida, que ele chamou de Bólide Poema A Tua na Minha, 1980, e à qual retornarei mais adiante.

 

Oiticica descreveu o seu experimento “Feito no Corpo” como “muito simples”.

Ainda assim, sua carta a Bruscky está cheia de instruções precisas e é bem característica da grande atenção que ele dedicava aos detalhes. A partir de tecidos simples de 3 metros de comprimento “cada pessoa deverá construir sobre seu corpo uma estrutura, juntando os cantos e as extremidades com alfinetes de fralda”. Ele enfatiza o fato de que cada capa deveria ser removível, sem que fosse necessário mexer nos alfinetes, para que assim pudesse ser repassada a outra pessoa, que iria “vestí-la” e atívá-la de uma maneira totalmente diferente. Esta parece ser a essência de sua proposta. Oiticica enfatiza que seria desejável a participação de um público heterogêneo, sublinhando esta palavra e terminando a frase com: “OK?” Trata-se de um exemplo perfeito daquilo que ele queria dizer com “o contato contínuo entre espectador e obra… condicionado pelo caráter da obra, ele mesmo não-condicionado”. É provavelmente a isto que Mário Pedrosa se referia ao descrever o trabalho da vanguarda brasileira da década de 1960 como “o exercício experimental da liberdade”. Temos uma grande dívida para com Paulo Bruscky, por ele ter convidado Hélio Oiticica para o Recife e também por ele ter guardado, cuidadosamente, os parangolés do evento, ainda que isto não fosse um aspecto essencial do conceito do mesmo.

 

Eu não estava em Pamplona quando Oiticica esteve lá, e por algum motivo também perdi o evento construído-no-corpo realizado na Inglaterra – dentre outras coisas, este último evento deve ter sido o responsável pelo culto aos alfinetes que surgiu, mais tarde, entre os punks britânicos.  O papel dos alfinetes de segurança é crucial. Com uma economia total, ele produz um casulo articulado a partir de uma superfície plana. Parece haver uma correspondência entre essas capas improvisadas e um outro fio condutor da obra tardia de Oiticica: a volta a certos princípios construtivistas nas maquetes para os novos  Penetráveis arquitetônicos, que seriam chamados de Invenção da Cor (Invention of Colour), em 1977-78. As modulações de luz e espaço criadas por painéis deslizantes, e por lados de cubos que se abrem e se fecham correspondem aos movimentos do corpo no Parangolé. Ele denominou os modelos arquitetônicos Invenção da Cor “porque não é mais estrutura-cor-pintura, ou aplicação de cores esculturais-arquiteturais: é cor em suspensão: nós repousamos sobre a cor”.  

 

Esses dois fios condutores repercutem um no outro e confirmam a busca de Oiticica pela liberdade, passando por todas as convenções e todas as categorias que delimitam o nosso estar-no-mundo sensorial, desde o que é segurado pelas mãos até o corporal, até o abrigo e até o ambiente total. Tal busca pode ser reconhecida em termos que ele mesmo atribuiu a Mondrian em seus primeiros escritos, e aos sonhos de dissolução da arte na vida que Mondrian nutria. Seria “nem arte mural nem arte aplicada, mas algo expressivo, que seria como a “beleza da vida”, algo que ele não foi capaz de definir pois ainda não existia”. 

 

 

Isto, porém, jamais poderia ser uma agenda positivista e isenta de ambigüidades. Os precários Parangolés, enquanto algo “construído no corpo”, devem ter atingido as profundezas da imaginação de Oiticica. Lá tornaram-se um dos veículos para uma meditação acerca do inevitável paradoxo da experiência. Só uma linha tênue separa todos os pares de opostos. Em sua forma mais simples, o próprio Parangolé é uma espécie de membrana, um véu, que repousa na interface entre o corpo vivo e o sentido da visão. Ver é, primordialmente, uma dialética de experiências, uma contradizendo a outra, um jogo contínuo de revelação e ocultamento do mundo, da realidade.

 

Na verdade, muitas das propostas de Oiticica parecem ser duas coisas opostas. Buscando inspiração no aristocrático tanto quanto no popular,  as Capas do Parangolé são, ao mesmo tempo, mantos e farrapos. No que se refere à forma, elas são logicamente estruturadas e espontaneamente selvagens. Em termos de experiência universal, elas se tornam um meio para declarações voltadas para fora (exteriorização da experiência por meio da aparência) e para auto-absorção, voltada para dentro (interiorização da experiência), liberdade e aprisionamento. Em algum estágio ulterior, elas também podem sugerir o começo e o fim da vida, ao mesmo tempo a bolsa amniótica que envolve o bebê ainda não nascido e o tecido sinuoso que envolve os mortos. Há algo de quase sobrenatural na maneira como A Tua na Minha, um lindo encapsulamento da reciprocidade, feito em seu último ano de vida, representa um par de opostos. Essa obra é tanto um aquecimento para o Carnaval, uma potencialidade cheia de vida, “um medidor de sensualidade” como ele a chamava, “para testar a sensualidade das pessoas”, quanto, ao mesmo tempo, uma mortalha em seu ocultamento escuro, que não pode deixar de ser interpretada como uma premonição de sua morte inesperada.  

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