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Frans Krajcberg

 

Frans Krajcberg foi um escultor, pintor, gravador e fotógrafo nascido na Polônia e naturalizado brasileiro. Autor de obras que têm como característica a exploração de elementos da natureza, destaca-se pelo ativismo ecológico, que associa arte e defesa do meio ambiente.

A Exposição

A mostra Frans Krajcberg: A Natureza como Atelier foi composta por 25 obras realizadas desde o início dos anos 1960 até o final da década de 1980. Entre os destaques, uma pintura e uma escultura em madeira queimada exibidas na Bienal de 2016 e uma “Bailarina” solitária, cercada de trabalhos bastante raros, de fases menos conhecidas do grande público, como os “Relevos” de minerais colados sobre painéis de compensado, realizados em 1961, em Ibiza, na Espanha, quando o artista ainda dividia morada entre o Rio de Janeiro e Paris; ou os “Relevos”, em papel artesanal, pigmentos e areia, produzidos já na década de 1970, quando decide se estabelecer definitivamente em Nova Viçosa, na Bahia. Sobre os relevos — de folhas de palmeira, areia da praia e minerais —, o crítico carioca Frederico Morais diria: “Krajcberg não inventou o relevo, mas terá sido o primeiro a criar relevos a partir de uma relação direta com a natureza.”

Seu Kraj

Walter Salles

 

Inverno de 1994, Paris, Montparnasse. Frans Krajcberg organiza seus trabalhos no ateliê que hoje vem a ser o museu que porta seu nome. Há obras representativas de diferentes fases: as primeiras tentativas de romper com o quadro, feitas nos anos 50, no Brasil; as “impressões” e relevos de Ibiza, criados nos anos 60; as “gordas”, esculturas dos anos 80 e 90 em madeira calcinada da Amazônia e Mato Grosso e revestidas de pigmentos de Minas Gerais. O vizinho Roger Pic, amigo próximo e um dos fotógrafos que registraram alguns dos movimentos políticos e culturais mais significativos do século XX, passa no ateliê para lhe dar um abraço. Conversam sobre vários tópicos: os nós da política internacional, a relação cada vez mais estreita entre arte e mercado — que ambos desprezam. Foi nesse mesmo dia que Krajcberg me mostrou a carta que recebeu de Socorro Nobre, presidiária que descobriu sua obra folheando uma revista semanal em sua cela, na Bahia. “Olha que carta impressionante”, ele diz. “Me identifiquei com o senhor”, Socorro escreve. “Suas esculturas dão uma nova vida ao que foi destruído. Nossas vidas aqui dentro também são calcinadas. Calcinada, aliás, é uma palavra que eu não conhecia, aprendi na revista.” Socorro chama Krajcberg de “Seu Kraj”, um apelido que incorporamos na filmagem que registrou o encontro entre os dois, em 1995. Socorro Nobre atesta a ressonância da obra de Krakcberg, sua rara capacidade de ecoar em diferentes públicos. Na retrospectiva que a Grande Halle de La Villette lhe dedica em 1996, mais de 300 mil pessoas são atraídas por sua obra. Uma mulher que desconheço me diz: “É a quinta vez que volto aqui, não consigo parar de voltar”. No ano anterior, um número semelhante de pessoas havia visitado sua retrospectiva em Curitiba. No primeiro documentário que fiz sobre Krajcberg, em 1987, algo se tornou claro de imediato. Se há uma obra dificilmente classificável, é a dele. Como Frederico Morais escreveu em um texto luminoso, sua obra é mais do que um projeto estético: é uma ética. E Morais lembra uma frase de  Paul Valéry: “Qual o propósito de uma obra cujo exercício não me transforma?”. Penso que Krajcberg alargaria essa questão, dizendo: “Qual o propósito de uma obra que não me transforma, e que não transforma?”. Talvez venha daí a empatia que tanto ele quanto sua obra geravam e geram nas pessoas mais diversas. É da vida, e não apenas da sua representação, que se trata. Krajcberg viveu intensamente cada uma de suas vidas, todas elas inseparáveis de sua obra. Aos 18 anos, teve de abandonar sua cidade natal, Kozienice, na Polônia — escapou a pé da invasão nazista. Combateu ao lado do exército soviético até a libertação de seu país, onde sua família foi dizimada nos campos de concentração. Da mãe, líder do partido trotskista polonês e que foi assassinada em 1939, guardou o horror aos nacionalismos. E, também, a percepção de que valia a pena viver e morrer por uma ideia. “Não há nada mais bonito do que isso”, ele diria na filmagem de Socorro Nobre. O primeiro renascimento ocorre em 1945, graças aos estudos com Willi Baumeister na Escola de Belas Artes de Stuttgart. Egresso da Bauhaus, o professor percebe em Krajcberg um talento e uma vivência atípicos. Numa das várias das cartas que marcariam a vida de seu aluno, Baumeister o apresenta ao pintor Fernand Léger, que o põe em contato com Marc Chagall, em Paris. E foi Chagall quem lhe deu dinheiro para embarcar num navio italiano que viria ao Brasil. “Estava cansado de tanta guerra e sofrimento. Queria ir para um país onde não havia homem. E me disseram que no Brasil não havia homem”, disse Krajcberg durante a filmagem de Socorro, sorriso nos olhos. O Brasil foi, para ele, o lugar onde um recomeço foi possível. Abraçou a natureza exuberante, sua extraordinária biodiversidade. Não foi uma adaptação fácil. Quando chegou ao Rio e, na sequência, a São Paulo, em 1948, passou fome, dormiu em bancos de praças. Trabalhou como operário na montagem da primeira Bienal Internacional de São Paulo, e numa fábrica de celulose no Paraná. Seu primeiro diálogo com a natureza se estabelece nesses anos, na série “Samambaias”. Em meados dos anos 50, Krajcberg se muda para o Rio de Janeiro e divide uma casa com o escultor Franz Weissmann. Trabalhando na fronteira entre a abstração e a figura, em 1957 recebe o prêmio de Melhor Pintor da Bienal daquele ano. Era o início de um caminho que passaria pela própria negação do quadro, pela busca do invisível que complementa o visível. Voltando a Paris, Krajcberg percebe o esgotamento do tachismo e se aproxima do novo realismo, que o crítico de arte Pierre Restany definiu como “um gesto fundamental de apropriação do real”. Em Ibiza, ele começa a usar papel japonês para criar relevos inspirados na imprevisibilidade dos solos. “Krajcberg não inventou o relevo, mas terá sido o primeiro a criar relevos a partir de uma relação direta com a natureza», lembra Morais. Esse «avesso do quadro” tem um profundo impacto. Na Galerie du XXe Siècle, suas “impressões” realizadas em Ibiza são exibidas ao lado de obras de Fontana e Gilioli. Yves Klein, Cesar e Arman também integram o movimento dos novos realistas, cuja originalidade e independência Krajcberg admirava — sem jamais se decidir a participar do grupo. A errância que marcou sua vida pessoal também se reflete no modo como transitou livremente por diferentes ismos, sem abraçá-los. Restany assim o definiu: “Frans Krajcberg faz parte desses homens raros, muito individualistas, mas também muito generosos na sua solidão. As provas da guerra o marcaram para sempre. A floresta brasileira foi ao mesmo tempo o meio, o teatro e o agente de uma verdadeira redenção”. A extrema singularidade de Krajcberg e sua recusa em se dobrar ao mercado explicam por que poucos colecionadores têm obras representativas de sua ampla trajetória. Os relevos e esculturas que Paulo Kuczynski reúne agora atestam o olhar arguto de quem percebeu no artista um dos expoentes mais importantes de sua época. Os relevos feitos nos anos 60 e 70 mostram ao mesmo tempo a busca incessante e a coesão do gesto estético de Krajcberg. Vários deles integraram a exposição “Art et Revolte”, no Museu de Montparnasse, em 2003, e ganham nova vida em São Paulo.

 

Krajcberg, A Arte de Viver

Maurice Dubroca

 

Ele tinha visto o mundo e a loucura dos homens, o dilúvio de fogo e as terras queimadas, o ódio no olhar do outro e os montes de cadáveres nas fábricas da morte na Polônia. De tudo isso, guardara uma intransigência, uma cólera profunda e uma revolta visceral. Mas o que havia de mais surpreendente em Frans Krajcberg era que, apesar de tudo, soubera preservar a criança que existia nele. Seu sorriso repentino iluminava seu rosto. Tinha uma capacidade incrível de se maravilhar diante da vida e das belezas da natureza. Quem teve a sorte de acompanhá-lo num de seus passeios botânicos pôde ser testemunha disso. Todos os dias, não importava onde estivesse – em Paris, no Brasil ou em outro lugar –, como num ritual, ele saía à descoberta do mundo vegetal. Era seu exercício cotidiano. “Um dia, na floresta, vi uma flor maravilhosa. Os raios do sol a iluminavam de uma maneira incrível”, contou-me Frans. “Chamei meu amigo Pierre Restany. Disse a ele: venha cá, Pierre! Venha ver essa flor! Quando ele chegou, o céu já tinha se fechado. A luz havia desaparecido. Tudo tinha mudado. É assim! Nunca vemos duas vezes a mesma coisa na natureza. É por isso que eu fotografo, que eu filmo sem parar, para não perder essa imagem que vejo.” Sua busca: captar esses instantes efêmeros, destacar sua beleza e também sua fragilidade. Por meio da lente de sua Leica, ele fixava uma sombra, uma luz, as dobras de um broto de planta, o aveludado de uma pétala ou mesmo, à contraluz, as nervuras de uma folha verde desfraldada como um estandarte do oxigênio do mundo. Krajcberg era uma fabulosa “arte de ver”. Dotado de um olho treinado pela longa observação de campo, tinha um senso de enquadramento e de composição único, que encontramos em toda sua obra. Vagens alongadas, relevos de folhas, quadros de pedras e de terra, troncos calcinados ou cascas... Ele cortava, recortava, juntava pedaços esparsos da natureza que retrabalhava para exibi-los numa cenografia luminosa: o preto e o branco da sombra projetada de um cipó delicadamente polido a fim de revelar suas linhas e sua épura... Um buquê mural de “flores de madeira” de um vermelho intenso graças aos pigmentos de Minas e ao corante de urucum... Krajcberg era um escultor da sombra e da luz. Se a natureza era a fonte de sua inspiração, era também sua respiração. Após os anos negros de sua juventude queimada pelos horrores da guerra, Krajcberg quer fugir dos homens. Ele se isola numa floresta do Paraná para pintar e lá descobre o esplendor da natureza brasileira. Deslumbrado com a beleza vibrante de todas as nuances de verde, reencontra ali a vontade de viver e de criar. “Ali nasci uma segunda vez”, dizia. Mais tarde, aliás, escolheu viver entre as árvores. Morava numa cabana empoleirada num pequi, embalado pelo canto dos passarinhos e o rumor do oceano, com a Via Láctea acima. Em harmonia com o cosmos, sabia que a solidão é um tesouro para quem quer ser livre. Havia plantado árvores e podia assisti-las crescer e ganhar viço. Mas quando confrontado aos incêndios da floresta amazônica e à destruição dessa natureza que tanto ama, ele se revolta: “Isso me deixava num estado de tristeza inacreditável. Chorei muitas vezes. Disse a mim mesmo: Aí está, lá vem a guerra de novo. Eu queria gritar! Mas se eu tivesse gritado pelas ruas teriam dito: ele é louco, ele é doente, precisa ir para o hospital. Então eu grito com o meu trabalho!” Seus “conjuntos”, espécies de mini-florestas de troncos de palmeiras calcinadas dispostas em direção ao céu e reunidas de maneira teatral, são emblemáticos. São um grito contra a destruição da natureza e contra a barbárie. Contra a desumanidade. Em suas obras, arte e biografia se confundem e remetem ao próprio passado do artista: “Eu sou essa casca queimada”, disse Krajcberg. Quando da apresentação no sul da França do filme “Retrato de uma revolta”, que fizemos juntos, tive o privilégio de assistir ao encontro entre Frans e o grande botânico Francis Hallé, especialista em florestas tropicais. Entre o artista e o cientista, a conexão foi imediata. Falaram sobre a comunicação das árvores, sobre essas moléculas voláteis que elas emitem para favorecer a condensação do vapor d’água e provocar chuvas sobre a floresta amazônica. Com eles, a botânica se transformava em poesia. Frans, como sempre, estava na vanguarda. A ciência confirmava suas intuições a respeito da vida e da inteligência do mundo vegetal. Ela vinha confirmar sua luta em defesa das florestas e do planeta. Por meio de suas obras e de seu empenho, Krajcberg nos alertava sobre o estado do mundo. Ele nos ensinava a olhar. Visionário, tinha tomado o partido da Natureza. Abria caminhos e nos mostrava a direção a seguir. Frans Krajcberg era um vigia do nosso mundo.

 

Frans Krajcberg, o Artista e a Causa da Árvore

Calude Mollard

Frans Krajcberg não está mais entre nós. Daqui em diante será preciso aprender a viver só com o artista, sem o amigo. A partir de agora sua história converge para seu legado, para esse Krajcberg sem Frans. Com ele, foi-se uma fração de sua obra, pois a vida fazia parte de seu trabalho. Ele mesmo era uma obra de arte. O rosto fotogênico, deformado pelas destruições provocadas pelo câncer, transmutava seu corpo em escultura. Ao longo dos anos, à maneira dos escultores, os cirurgiões foram talhando e retalhando suas feições. Como o rosto de Orlan, o de Krajcberg se tornara obra, efeito involuntário naquele ser delicado que não suportava que uma árvore fosse ferida. Coerente até o fim, morar no alto de uma árvore foi seu manifesto. Frans Krajcberg era uma espécie de árvore que envelheceu sem deixar de verdejar a cada ciclo das estações. Muitas vezes a dureza da vida fez com que roçasse a morte. Cheguei a receber o aviso de que estaria prestes a morrer, era uma questão de horas. E ele “ressuscitou”, como em outras ocasiões, em 1940, na Rússia, durante a guerra. Enquanto sua noiva e seu companheiro de infortúnio morriam a seu lado, a sorte o protegia dos fogos da guerra. No Brasil, as chamas que devastavam as florestas do Paraná destruíram sua casa. E se Frans Krajcberg era uma árvore, sua casa era um ninho empoleirado num velho galho de mais de mil anos. No alto desse galho, o arquiteto Zanini construiu um ninho para acolher essa espécie de judeu errante. Hoje, Krajcberg repousa em cinzas num oco de árvore, um pequi vinagreiro. Ao se aninhar na madeira do tronco que sustenta sua casa, ele de fato deu início a um processo simbólico de metamorfose de homem em árvore. E talvez permaneça inscrito nas nervuras pelas quais correu a seiva, o sangue da natureza. Krajcberg foi o primeiro artista a fazer da árvore o centro de uma obra. Ele é o pai de uma geração de artistas da árvore. Ele a respeitou, honrou, ressuscitou, devolvendo àquelas que se haviam queimado uma nova vida artística e cultural. Seus totens, a cada nascimento, eram uma vitória sobre a morte, sobre o fogo das destruições. Ele inaugurou essa linhagem de artistas que respeitam as árvores. Não cortou nada das árvores. Acrescentou-lhes flores de pau, raízes e galhos de outras espécies, criando esculturas por adição de madeiras de origens diversas, por uma hibridação que carrega uma mensagem de esperança. As árvores-esculturas de Krajcberg enriquecem o vocabulário da arte contemporânea. Às vezes ele acrescenta revestimentos naturais ao tronco, como que para proteger a madeira, cobrindo-a, à maneira dos índios, com camadas de manganês negro e de óxido de ferro vermelho. Essas árvores-totens, protegidas por essas couraças simbólicas, estão prontas para voltar ao combate. Uma árvore em pé já é por si só uma imensa escultura. É também um pulmão que permite aos humanos continuar a respirar. Por esse caminho Krajcberg passou da arte à ecologia. A partir dos anos 80, ele se opôs ao holocausto contra as árvores. Foi assim que se tornou um artista militante do planeta. Com sua voz lenta e forte, estigmatizava a loucura e a barbárie dos homens em vias de destruir o planeta. Era um homem livre. Esse velho comunista polonês, instruído pela mãe, heroína da resistência anti-nazista, tratou sempre de não sucumbir à dominação do mercado sobre a criação artística. Durante muito tempo viveu entre Paris e o Rio de Janeiro, fazendo uma ponte entre os dois continentes. Fora revelado pelo crítico de arte Pierre Restany, que em 1960 fundou o novo realismo. Entrou para essa aventura de artistas e escritores por obra de seus relevos de árvores e folhagens sobre tela ou papel. Em 1978, às margens do rio Negro, na Amazônia, redigiu com Pierre Restany o Manifesto do Naturalismo Integral. Em 2013, publiquei com ele o Novo Manifesto do Naturalismo Integral, confirmando as ideias e os alertas de 1978. Krajcberg estava sempre disposto a gritar pelo planeta. Seu último grito foi no Jardim Botânico do Rio de Janeiro em dezembro de 2015, por ocasião da COP 21 de Paris. Como tantos precursores, ele terá tido razão cedo demais. E é por isso que devemos homenageá-lo.

 

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