A Exposição
Em 2004, após um longo período de reforma, o Escritório de Arte foi reaberto com uma exposição inaugural coletiva, trazendo ao público obras dos grandes artistas modernistas em um espaço totalmente reformulado e projetado por Pileggi Arquitetura.
Trajetória
Uma coleção imaginária
PAULO KUCZYNSKI
O que faz um jovem estudante abandonar o curso de biologia em 1969 e se transformar num marchand de tableaux?
Para responder a essa pergunta, é preciso antes de tudo conhecer o marchand Benjamin Steiner e vê-lo em ação, vendendo em casa alguma obra-prima (a Santa ceia de Gomide, por exemplo); é fascinante espreitá-lo da sala ao lado. É preciso, nesta mesma casa, descobrir as muitas gavetas cheias de desenhos de Ismael Nery, que "Benja" mostrava contando a trágica história do artista, esquecido por mais de trinta anos. Foi com Benja que aprendi uma das primeiras lições: entesourar obras para valorizá-las em outra época. E foi com ele também que aprendi a comprar: num olho a paixão, noutro o desdém - malícias e espertezas à parte.
Em 1967, ainda estudante, fui apresentado a Volpi pelo professor Mario Schenberg, solidário e muito próximo ao movimento estudantil. Volpi, assim como outros artistas da época, colaboravam com o movimento doando quadros. Só anos depois me dei conta da grandeza humana que tive o privilégio de conhecer e do pouco que pude captar de sua sabedoria. As vezes se é jovem demais...
Em 1969, comecei a comprar quadros de Volpi em sua casa, no Cambuci, e a vendê-los a meus poucos conhecidos: além do Benja, apenas Cesar Luiz Pires de Mello, dono da galeria Cosme Velho e ainda hoje um grande amigo. Os Volpi cheiravam ao delicioso óleo de cravo usado na composição da têmpera – como o cheiro perdurava por uns meses, durante vários anos tive o cacoete de cheirar os Volpi que me ofereciam para saber se eram recentes.
Volpi pintava pouco e seus quadros eram muito disputados, mas eu tinha o privilégio de conseguir pelo menos um por mês. Talvez por simpatizar comigo, às vezes ele me contava, entre um cigarro de palha e outro, de velhos amigos ou parentes que tinham quadros antigos e que poderiam vendê-los. E foi assim que comecei minha vida de caçador: dia após dia, de uma indicação a outra, eu buscava os antigos Volpi, das
décadas de 20 e 30, muito apreciados então. Até hoje a surpresa de entrar numa casa sem saber exatamente o que me espera - algo medíocre ou uma obra-prima? - é o melhor do meu trabalho.
Corriam anos muito feios no Brasil e procurar e vender quadros era quase um escape da realidade. Numa bela noite, no início dos anos 70, jantando com Benjamin Steiner e Paulo Roberto Strieder (amigo de adolescência, vizinho e sócio por algum tempo), Benja nos fez uma revelação - a nós, jovens ignaros -, algo de que nunca tínhamos tido notícia: Theon Spanudis, o homem e sua coleção. Sem perder tempo, fomos vê-lo dias depois, e confesso que a figura desse psicanalista aposentado e quase eremita me assustou um pouco. Ele nos recebeu, talvez por cautela, no apartamento da mãe, no térreo do prédio onde ele morava. E logo estranhei não ver nem um Volpi sequer nas paredes daquele ambiente quase monástico. O homem de olhar penetrante, fala pausada, rigidez contida mas evidente, observava e avaliava os dois rapazes com cuidado. A certa altura, ele sumiu para dentro do apartamento, e só voltou depois de longos minutos, já com uma extraordinária tela de Volpi nas mãos: a Garagem preta (como eu a chamo até hoje), que ele nos deu para vender.
Vendemos a tela no dia seguinte e, com nosso entusiasmo pelo resultado tão pronto, ganhamos sua confiança. Abriram-se então as portas do paraíso, e pudemos ver a coleção surpreendente que Theon fizera nos anos 50. Havia ali alguns dos momentos mais poéticos da obra de Volpi, nunca por mim imaginados. Telas que escapavam a fases e rótulos conhecidos, que eram pura poesia e que Theon chamava de "Brinque-
dos". Da sua coleção, ele reservava estes últimos para conviver até o fim da vida, e venderia quase todos os outros, que não eram poucos.
À parte o horizonte de bons negócios e meu óbvio apetite, estava ali o olhar sensível de Spanudis, que soube pinçar o sublime entre tantas pinturas que viu no convívio com Volpi. Esse olhar seletivo me marcou profundamente e reconheço hoje, nesse encontro com Theon, o início do meu processo de trabalho: deter-me longamente nas
pinturas, pensá-las, selecioná-las e ouvir opiniões em busca dos momentos iluminados
de cada artista.
Poucos anos depois, meu monólogo com os quadros se expandiu num diálogo com
Gerard Loeb (meu sócio por catorze anos), homem de gosto refinado, apreciador da arte e da música. Fazíamos comparações o tempo todo: Volpi, para nós, era sem dúvida mozartiano. Como Gerard não tinha filhos, e eu já não tinha pai, me tornei seu filho artístico.
Passados os primeiros anos de trabalho - de intensa obsessão pelos Volpi -, o horizonte se ampliou e comecei a descobrir todos os belos artistas que tivemos no século XX. Embora alguns ainda estivessem vivos nos anos 70, tive pouco contato com eles, pois meu olhar sempre se dirigiu para suas fases mais criativas, buscando o melhor que produziram. Mesmo nos grandes mestres (exceções são poucas), há sempre uma
fase de aprendizado e busca até que se atinge o momento inovador ou revolucionário.
Depois do apogeu, que pode ou não perdurar por alguns anos, vem invariavelmente a repetição e a diluição. Identificar o período áureo de cada artista, resistindo à tentação do comercial, é o desafio do trabalho seletivo do marchand. O olhar impiedoso para com o que não tem qualidade foi o que aprendi com os meus pares de eleição: Antonio Maluf e Jean Boghici.
Ao longo das décadas seguintes, desenvolvi grandes afinidades com minha clientela e pude orientar meu trabalho para a formação de importantes coleções brasileiras, resgatando e revelando preciosidades. Agora, a partir de 2004, percebo que esse trabalho será ampliado junto com o velho sobrado de esquina em que estou há trinta anos (tão charmoso embora acanhado). Eu, que queria apenas uma sala maior, acabei ganhando, com o projeto de Sérgio Pileggi, uma galeria embaixo. Esse espaço novo me permitirá realizar exposições quando um conjunto de obras, mesmo que pequeno, revelar uma visão nova ou se unir por um sentido especial.
Há um momento crucial no trabalho do marchand - em geral, solitário – que não é mais a busca nem a descoberta de obra alguma, mas sim sua apresentação ao cliente.
Somente quando o objeto de arte apresentado faz vibrar uma corda bem no fundo daquele outro olhar é que se estabelece uma cumplicidade. Sem esse cúmplice na admiração, nada feito: não há convencimento possível, muda-se de assunto, mostra-se outro quadro. No fundo, a pergunta que sempre me faço é: “A quem este quadro fala?".
Depois de 35 anos, tanto vibrou essa corda de sedução e paixão que vários colecionadores se tornaram meus amigos e juntos puderam me oferecer a visão desta coleção imaginária. Como o marchand sempre escolhe, reúne, porém logo dispersa as obras, este é um raro momento. Esta exposição mostra uma parte do que me ficou na memória de todos esses anos, e vai aqui oferecida como um pequeno tributo àqueles que, ao se apaixonar pela arte, criam um lugar interior para ela.