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Enigmas Instantâneos . Cildo Meireles

Cildo Meireles 

 

Cildo Meireles é um escultor e pintor brasileiro. Conhecido internacionalmente, Cildo cria os objetos e instalações que diretamente levam o observador em uma experiência sensorial completa, questionando, entre outros temas, a ditadura militar no Brasil e a dependência do país na economia global.

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A Exposição

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Enigmas Instantâneos, realizada em 2018 pelo Escritório de Arte Paulo Kuczynski, expôs obras inéditas de Cildo Meireles, ícone da arte contemporânea brasileira, apresentando importantes trabalhos produzidos nas décadas de 1970 e 1980, mesclando o caráter político e jocoso, característicos do artista. O texto do catálogo da mostra foi de autoria do crítico Paulo Venâncio Filho e o projeto expográfico assinado pelo arquiteto Pedro Mendes da Rocha.

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Enigmas Instantâneos

Paulo Venâncio Filho

 

Os objetos, assim como as instalações, constituem uma tipologia especial na obra de Cildo Meireles. Sempre integraram sua prática artística, embora muitas vezes obscurecidos pelas instalações de grandes dimensões. Mas os objetos têm sua dimensão própria, a par das instalações, em geral como resumos, núcleos ou reduções compactas destas. O objeto foi, historicamente, definido negativamente – nem escultura nem pintura. No entanto, essa definição inicial excludente não dá conta de caracterizá-lo, antes diz o que ele não é. Com ele surge uma nova entidade específica, heteróclita, polimórfica, heterogênea. Tornou-se uma categoria própria, embora de difícil e instável definição; o objeto se modifica constantemente no tempo e no espaço, de artista para artista, dos quais não exige nenhuma habilidade ou especialização. Pode se confundir com coisas ao redor – não possuindo um lugar próprio, pode estar em qualquer lugar. Este é o território onde atuam os objetos de Cildo.

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Os objetos supõem uma materialidade qualquer, não recusam nenhum tipo de material; todo e qualquer um é possível e plausível. Objetos, de modo geral, são de reduzidas dimensões, embora atuem e modifiquem o ambiente que ocupam. Podem estar no chão, na parede, numa mesa, numa base ou suspensos, um tanto indiferentes quanto ao lugar que ocupam.  São também produtos, e portanto muitas vezes se confundem com o universo dos produtos, ainda que não sejam ready-mades. Em sua origem são objetos de desejo: a princípio um objeto é algo para se ter, como qualquer produto. Como tal pretendem atingir a esfera íntima, subjetiva, do espectador por meio da maior proximidade possível, tanto visual quanto tátil. Unitário ou composto de partes, o objeto é uma entidade em si.

Pertencendo num primeiro momento ao mundo das coisas ao redor, das coisas familiares e usuais, o objeto adquire uma dimensão que não é só física e espacial, já que ele constrói um espaço físico e imaginário, estranho e indefinido. Indica uma nova forma de consumo, uma ainda utópica apropriação das coisas, possivelmente extensiva a todos os objetos, sob a forma de um gratuito e geral pertencimento. O objeto se abre a todas as possibilidades. Até mesmo estar em oposição e anular a si próprio – Anulação por adição ou oposição é o título de um objeto de Cildo. Ou anular-se comicamente por meio da deformação, como Rodos.

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Se a espacialidade das grandes instalações de Cildo nos envolve com seu impacto sensorial, seus objetos exigem uma concentração extrema, como se fixados diante de um enigma que enquanto não for decifrado não nos permite seguir adiante.  Mais ainda: ficamos presos à latente disposição do objeto de liberar uma possibilidade inédita, desconhecida, surpreendente. Percebemos, então, que o raciocínio de Cildo se dá através dos objetos e com os objetos. Ele quer raciocinar com as coisas, com o mundo concreto, cotidiano, próximo. Observá-lo e estranhá-lo, contemplá-lo até o estranhamento. Logo, objetos comuns se tornam incomuns, estranhos, deformados, deslocados. Mutáveis, deformáveis, capazes de assumir formas, situações, relações conhecidas ou estranhas, simultaneamente. Desenhos, por exemplo, podem se metabolizar num objeto pelo irônico deslizamento dos homônimos – Pastel de pastéis.

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Em Value impaired – notas de dinheiro acumuladas no teto, moedas no chão – reaparece um constante leitmotiv de inúmeros outros trabalhos; não há outro objeto mais corrente na obra de Cildo do que a cédula de dinheiro. Ela é uma espécie de “objeto-tipo” de seu trabalho, sempre presente ao longo da obra, como no já clássico Zero cruzeiro.  Se a obra constitui um valor, toda obra é alegoricamente uma cédula, um potencial valor circulante. Fazer da obra cédula e da cédula obra , é colocar uma dentro da outra, realizar um “desparecimento” da obra na cédula.

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Objetos são, então, uma espécie de enigmas instantâneos, rápidos esquemas construídos a partir de coisas usuais, como Razão e loucura – um arco de bambu, corrente, cadeado e chave. Uma formulação epigramática, econômica. Decerto este objeto traz uma dose de loucura, mas é construído dentro da mais precisa racionalidade. Ou seja: Razão e loucura, bem entendido, não Razão ou loucura.

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 Ter a variedade infinita   de coisas à disposição é como ter o mundo disponível ao conjunto de categorias a que o objeto submete: humor, ironia, alegoria, crítica. O objeto é o lugar de inúmeras operações combinatórias. Vem de uma longa e ilustre tradição que parte de Duchamp, entre outros, passando pelo surrealismo, construtivismo, o não-objeto, o special-object,  o objet trouvé e tantos mais. O objeto de Cildo é uma combinatória possível de excludentes. Ainda assim seu objeto é um objeto, é um objeto, é um objeto. Simples assim. Sem indício de outra realidade, ideia ou conceito. Está fundado no aqui e agora, radicalmente.

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O que esses objetos revelam é uma intensa carga imaginativa como um limite conceitual preciso. Digamos que sejam objetos “para-científicos”, imaginativamente carregados e precisos em sua formulação. Nunca vão além do necessário, a poética do trabalho é rigorosamente “controlada. A atenção de Cildo circula ao redor, anti-duchampianamente; aqui ou ali encontra aquilo que agarra sua atenção, mas o objeto nunca se desconecta de uma ideia, nunca se esgota na ideia. E, a partir dos objetos existentes, vai propor outros, além  dos que estão aí, no mundo. É o objeto que “propõe”: o bastão dos Desaparecimentos sugere o ato mágico – o qual simbolicamente tem o poder de fazer aparecer e desaparecer. Naturalmente o lenço pode “desaparecer” no bastão e o “segredo” da mágica se expõe, revelado. A sequência do desaparecimento (e reaparecimento) é cinematográfica, exposta em cada um de seus momentos: início, meio, fim e o inverso; o despertar do objeto da sua condição inerte.

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 Os objetos de Cildo, em geral comuns, objetos quaisquer, sem valor evidente, tangenciam o ready-made e, ao se aproximarem dele, dele se desviam. Deixam-no para trás, levando-o consigo. Propõem, por assim dizer, o “desaparecimento” do ready-made. Quando se aproxima o fim da era dos objetos, intermediários usuais entre sujeito e mundo, esses trabalhos vão permanecer como verdadeiro testemunho do potencial imaginativo, hoje cada vez mais emudecido, das coisas próximas e a nossa volta.

 

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Texto Cildo
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